Documento estabelece como um dos critérios a experiência na condução de processos eleitorais, que pode favorecer o presidente cessante da CNE, que deverá concorrer à sua própria sucessão. Em causa está a violação do princípio constitucional da igualdade.
O concurso curricular para o provimento de vaga do cargo de presidente da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) está a dividir, mais uma vez, as opiniões de alguns círculos da sociedade que entendem que um dos critérios para a avaliação dos candidatos se encontra “viciado e favorece” Manuel Pereira da Silva ‘Manico’, o actual responsável pelo órgão que deverá concorrer à sua própria sucessão, ao estabelecer na alínea b) do artigo 11.º do regulamento como um dos requisitos 40% de experiência na condução de processos eleitorais.
O critério em causa, segundo especialistas em Direito e analistas políticos, fere o princípio constitucional da igualdade que emana no artigo 23.º, nº 1, que “todos são iguais perante a Constituição e a lei”.
Em caso de empate na classificação dos concorrentes, de acordo com o n.º 2 do artigo 11.º do regulamento, o critério de desempate é o da experiência na condução de processos eleitorais ou na impossibilidade de desempate por esse critério, aplica-se a maior antiguidade na magistratura.
Luís Jimbo, especialista em Processos Eleitorais e em Resolução de Conflitos, considera atípica a base de critério de avaliação do currículo do candidato da alínea b).
Na sua perspectiva, o referido requisito coloca em causa o princípio da objectividade do método de avaliação e “o princípio geral de igualdade de condições e de oportunidades para todos os candidatos.
O também coordenador nacional do Observatório Eleitoral Angolano não tem dúvidas de que aquele critério coloca, igualmente, em causa os magistrados judiciais oriundos de qualquer outro órgão judiciário, que não têm experiencia eleitoral prévia perante os magistrados judiciais em funções de comissários eleitorais.
Ironiza ser uma “inovação regulamentar” adequar aquele regulamento a um modelo do Tribunal Eleitoral, cujas funções e atribuições dos ‘juízes eleitorais’ são o de garantir a integridade e a transparência das eleições.
“Por exemplo, no Brasil, os juízes eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral, que organizam e fiscalizam as eleições, têm competência e experiência profissional eleitoral, bem como doutrina do direito eleitoral para a realização do recenseamento eleitoral, as operações de votação, de contagem e do julgamento dos recursos de impugnação eleitoral, assim como o recurso contra as decisões dos juízes eleitorais.
Neste modelo de Tribunal Eleitoral, explica, o critério de avaliação curricular dos juízes eleitorais deve consistir na experiência em conduzir processos eleitorais, o contrário da realidade angolana.
Este não é o pensamento do jurista Albano Pedro, que considera a experiência na condução de processos eleitorais um critério meramente eliminatório em relação aos candidatos que preenchem os requisitos, que, na sua visão, não ofendem princípios constitucionais.
“Trata-se de um critério de discriminação positiva, no sentido de que uns têm de ser afastados, para que a pessoa que tem de ter acesso ao cargo tenha, porque, se nenhum deles for afastado, então ninguém vai assumir a função”, diz.
Para o também constitucionalista, os critérios de eliminação estão muito bem acertados, por estarem dentro do perfil dos próprios candidatos.
Albano Pedro discorda da opinião de que o artigo 11.º, alínea b, do regulamento tem como propósito acolher eventual candidatura de Manuel Pereira da Silva ‘Manico’, pois o número de magistrados com experiência eleitoral já é expressivo. “As comissões eleitorais provinciais e municipais também têm um magistrado judicial e, se são 18 províncias, à partida, está claro que o número de magistrados com experiência eleitoral não é pequeno e que terão exercido as funções no mandato cessante”, sustentou, referindo-se à Lei n.º 12/12, de 13 de Abril (Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento da CNE).
Guilherme Neves, presidente da Associação Mãos Livres, rebate a analogia de Albano Pedro e diz que foi montada uma “espécie de esquema legal”, para que o concurso favoreça o presidente cessante.
Na visão das ‘Mãos Livres’, argumentou, o critério de 40% fere o princípio de igualdade, afasta e retira a possibilidade de outros concorrentes ganharem o concurso, alimentando o conflito de interesses, o que afasta, igualmente, o princípio da sã concorrência.
“Num Estado Democrático e de Direito, as instituições públicas devem assegurar e promover a igualdade de direitos e de oportunidades, sem quaisquer outras formas de discriminação”, aflorou.
Socorrendo-se do artigo 7.º da Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento da CNE, que emana que aquele órgão da administração eleitoral é presidido por um magistrado judicial, oriundo de qualquer órgão, escolhido na base de concurso curricular e designado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial, o qual suspende as funções judiciais após a designação, não condiciona a experiência na condução de processos eleitorais.
Aludiu que a missão do presidente da CNE é a defesa da democracia, na medida em que o processo para o provimento daquela vaga deve ser “justo e democrático”, para que esse órgão nasça com valores da justiça e com a missão de assegurar a verdade eleitoral expressa nas urnas.
“A eleição do presidente da CNE é necessária e deve acontecer dentro das balizas de justiça e não de discriminação, pelo facto de esse órgão ter uma missão essencial de administrar, coordenar e realizar as eleições”, sublinhou.
O facto de o presente regulamento e o anterior do concurso público curricular para o provimento do cargo de presidente da CNE preverem como um dos critérios de avaliação, por sinal com maior valoração, a experiência na condução de processos eleitorais, suscitou algumas indagações, diz o jurista Frederico Batalha.
Questiona que, se um dos requisitos essenciais de candidatura para presidente da CNE é ser magistrado judicial, que é uma função incompatível, por não ser exercida em simultâneo com outras funções, onde o candidato vai buscar a referida experiência na condução de processos eleitorais?
Em resposta à sua pergunta, refere que, havendo a dita experiência, faz mesmo sentido q ue seja o critério de maior valoração e de desempate.
“Tal critério não será ad-hoc e imposto para privilegiar determinado(s) candidato(s)? A manter-se esse mesmo critério, não fica beliscado o princípio da igualdade, firmado no n.°1 do artigo 23.° da Constituição?, pergunta-se.
Como outros intervenientes, o analista político Albino Pakisi ressalta que a pauta do concurso está inquinada pelo facto de se querer colocar na CNE um presidente conveniente – aquele que convém às estruturas no poder e ao presidente do Tribunal Supremo (TS).
“Se fôssemos um país sério, ao invés de se atribuir 40% à experiência eleitoral, que é a percentagem máxima, teríamos esses 40% na alínea d), que é o mérito profissional geral. O que mais faz confusão nessas matérias, na minha perspectiva, é o facto de nós não respeitarmos o mérito”, desabafou.
Contudo, considera o artigo 11.º uma “ratoeira” para o presidente do TS colocar alguém da sua conveniência e do partido no poder.
“Se for para a experiência na condução de processos eleitorais, uma das figuras com mais experiência é o próprio presidente cessante da CNE, que, neste momento, pode ser reconduzido, penso eu”, admitiu.
Rememorando a crise pós-eleitoral de Moçambique, Albino Pakisi rece ia que o País tenha sempre eleições com pouca transparência e com pouca verdade eleitoral.
«Ao invés de se atribuir 40% à experiência eleitoral, que é a percentagem máxima, teríamos esses 40% na alínea d)»
Presidente cessante da CNE reúne condições legais para concorrer à sua própria sucessão, mas regulamento inquieta alguns círculos da sociedade que exigem transparência no processo.